05 Agosto 2020
“Os aparatos ideológicos do sistema constroem um ideal de desejo exigente e insaciável, ao passo que, através dos anos, especialmente com o avanço do neoliberalismo, se reduziu o padrão de vida dos trabalhadores e se condenou a juventude à precarização no trabalho. O consumo de psicofármacos, instabilidade mental, ansiedade, depressão, intolerância ao sofrimento, frustração e estresse no trabalho são consequências de tudo isso”, escreve Eduardo Camín, jornalista uruguaio credenciado na ONU-Genebra, analista associado do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica, em artigo publicado por CLAE, 03-08-2020. A tradução é do Cepat.
Para informar a gestão da Covid-19, é vital compreender o impacto socioeconômico das políticas utilizadas para administrar a pandemia, que inevitavelmente terão graves efeitos na saúde mental, ao aumentar o desemprego, a insegurança econômica e a pobreza.
A fim de proteger o bem-estar dos trabalhadores, durante esse período de crise e mudança, a Organização Internacional do Trabalho - OIT publicou um novo guia dirigido aos empregados, empregadores e gerentes, denominado Gerenciar os riscos psicossociais relacionados ao trabalho, durante a pandemia de Covid-19.
O guia abrange dez áreas de ação, durante o confinamento e o retorno ao local de trabalho. Contém orientações sobre como organizar o espaço físico no local de trabalho, incluindo a disposição e os pontos de exposição aos agentes perigosos, a forma de avaliar o volume e a distribuição do trabalho no contexto específico da Covid-19.
Indica como lidar com a violência e o assédio, e de que maneira uma liderança firme e eficaz pode ter um impacto positivo sobre os empregados. Além disso, explica aos trabalhadores como proteger a si mesmos de demissões injustas, em situações em que se recusam a trabalhar por medo de que sua saúde ou sua vida possam estar em perigo.
Manal Azzi, especialista em segurança e saúde do trabalho, observou que “com um número tão alto de trabalhadores sofrendo as consequências psicológicas da pandemia, a saúde mental não pode continuar sendo um tabu. (…) Diante desse impressionante nível de incerteza, os trabalhadores podem sofrer alterações de humor, baixa motivação, fadiga, ansiedade, exaustão e até pensamentos suicidas”.
“Também pode haver uma série de reações físicas, como problemas de digestão, alteração de apetite e peso, reações dermatológicas, cansaço, doenças cardiovasculares, distúrbios osteomusculares, dores de cabeça e outras dores. Além disso, pode levar ao aumento do uso de tabaco, álcool e drogas como forma de lidar com o estresse", acrescentou.
Passar por essa pandemia é difícil. Muitos de nós nunca viveram essa situação. Não temos normas, experiência ou modelos a seguir. É por isso que ter orientações e falar sobre saúde mental no local de trabalho é vital para quebrar o tabu.
O teletrabalho tornou-se parte da nova normalidade. Submeteu os trabalhadores a novas tensões, já que se encontram isolados e tentando conciliar responsabilidades profissionais e familiares, e percebem que as fronteiras entre a vida profissional e a pessoal não são claras, quando se trabalha a distância. O fenômeno foi tão repentino e massivo que nenhuma norma de teletrabalho oferece proteção adequada para esse novo espaço de trabalho.
Os trabalhadores que estão na linha de frente, como os da saúde e de serviços de emergência, mas também aqueles envolvidos na produção de bens essenciais, na entrega e transporte a domicílio, e os responsáveis por garantir a segurança da população, também enfrentam muitas situações estressantes devido à pandemia.
Nos últimos meses, tiveram que suportar um aumento na carga de trabalho, mais horas de trabalho, pouco tempo de descanso e o medo constante de se infectar no trabalho e transmitir o vírus para familiares e amigos.
Além disso, muitos temem perder o emprego. Demissões em massa estão afetando todos os setores da economia. O desemprego está nos níveis mais altos, desde a Grande Depressão, não se deve estranhar que todos sintamos insegurança em relação ao futuro. Se não forem avaliados e gerenciados de maneira apropriada, esses riscos psicológicos podem desencadear e exacerbar a ansiedade e se transformar em problemas de saúde mental reais.
Na medida em que a pandemia continua presente em nossas vidas, os especialistas falam, e enfatizam cada vez com maior frequência, a pandemia de Saúde Mental que o confinamento e a esta crise de saúde pública vão gerar. Os efeitos psicológicos, sociais e neurocientíficos da Covid-19 estão sendo explorados em diferentes partes do mundo.
Mesmo antes do termo Covid 19 entrar em nosso vocabulário, o esgotamento, o estresse e a ansiedade eram problemas críticos no local de trabalho. Obviamente, com a pandemia, as coisas pioraram muito. Nos últimos meses, muitos trabalhadores se sentiram impotentes diante das mudanças profundas que sofreram.
Dado que a situação de isolamento social exigida pela Covid-19 coloca sobre a mesa a saúde mental, suas patologias e como abordá-las, seria necessário contribuir para o debate a partir de uma perspectiva classista que contemple integralmente essas problemáticas.
Como se percebe a saúde mental? É verdade que a maioria dos transtornos mentais e/ou desordens não são facilmente perceptíveis, visíveis. Não apresentam os sintomas físicos claros e universais de doenças conhecidas como tais, como a tosse e a de uma gripe, ou marcadores bioquímicos precisos, como os vírus.
Se as pessoas com essas condições não falam, ou seu ambiente social não percebe a situação - que apresenta indicadores e sintomas próprios -, o problema é ignorado e, portanto, não é tratado em conjunto com um profissional a tempo.
Isso é acompanhado pela construção de preconceitos em torno de patologias mentais, que vão do medo ao negacionismo. Preconceitos que são construídos e reforçados quando não se oferece, por nenhuma instituição, informações científicas e claras sobre a problemática e que se aprofundam juntamente com o próprio problema, quando não se acessa o atendimento psicológico gratuito.
Muitas vezes, essa situação se condensa em um círculo vicioso, quando a patologia produz exclusão social e é acompanhada de desespero, medo e pode levar à autoagressão e até suicídio. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a cada 40 segundos, uma pessoa se mata.
Os aparatos ideológicos do sistema constroem um ideal de desejo exigente e insaciável, ao passo que, através dos anos, especialmente com o avanço do neoliberalismo, se reduziu o padrão de vida dos trabalhadores e se condenou a juventude à precarização no trabalho. O consumo de psicofármacos, instabilidade mental, ansiedade, depressão, intolerância ao sofrimento, frustração e estresse no trabalho são consequências de tudo isso.
Isso não é coincidência e nem culpa de um vírus. De qualquer forma, o vírus é o capitalismo voraz, desumanizante, que durante todas as suas crises tentou sair delas passando por cima das classes mais desprotegidas, reduzindo a qualidade de vida das pessoas de baixo, a estabilidade socioeconômica e, portanto, a estabilidade mental das pessoas.
Existe um mandato de felicidade construído dentro do capitalismo neoliberal, potencializado pelo pós-modernismo adaptado, no qual a felicidade é alcançada apenas a partir da individualidade. Um mandato de felicidade irrealizável, fantasioso e meritocrático, que pode responder aos ideais burgueses (ter casa, filhos, carro e cachorro) ou a uma fantasia pós-moderna de felicidade fora da sociedade (viver sozinho na montanha e cultivar sua comida).
A obrigação de produtividade, os horários de trabalho alterados e, é claro, o desemprego, particularmente nesse contexto. A saúde mental dos trabalhadores não tem absolutamente nenhuma importância para os patrões.
Essa sociedade capitalista desumanizou, alienou e fez desaparecer a diferença entre tempo de trabalho e espaço de lazer, relações sociais e vida privada, criatividade e produtividade, necessidades humanas e autossegurança, a serviço da valorização do capital, em detrimento do bem-estar das pessoas.
Os movimentos sociais chilenos cunharam em suas paredes uma daquelas frases que ilustram bem a situação: “Não é depressão, é capitalismo". Isso não significa que as patologias como tais não existam e que o sofrimento que geram não seja real. Quebrar os mitos negacionistas implica aceitar que o problema existe e ver como deve ser analisado na perspectiva classista.
Portanto, os problemas de saúde mental não são estranhos ao sistema, pelo contrário, são característicos dele, são sistêmicos. Vivemos em um sistema excludente, como consequência, as medidas de atenção e contenção dessas patologias também são excludentes: o acesso ao atendimento psicológico, tratamentos adequados, incluindo as hospitalizações, são estratificados como em todo o sistema de saúde em geral.
Esses problemas afetam especialmente os setores populares, a juventude e os trabalhadores. Portanto, devem ser abordados como tal, sem negacionismo, nem infantilismos. Tem que ser uma preocupação de toda a sociedade e não apenas daqueles que sofrem e dos trabalhadores da saúde.
O sistema capitalista é um sistema desumanizador, que reprime e expulsa indivíduos que não lhe são úteis, que carrega seus mecanismos de poder, que tenta se perpetuar através de um mecanismo social que se alimenta de contradições.
Infelizmente, milhares de pessoas cometem suicídio todos os anos e muitas outras sofrem de doenças mentais relacionadas não apenas à estrutura econômica do capitalismo, mas também à sua própria essência repressiva.
Há um longo caminho a percorrer. É necessária uma abordagem classista da saúde mental, que permita uma visão integral sobre a problemática. O capitalismo gera sofrimento e nega as possibilidades de tratá-los adequadamente. Será necessário alcançar uma sociedade mais justa, onde a saúde e o bem-estar sejam verdadeiramente direitos universais.
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Saúde mental, a eterna “loucura” do capitalismo. Artigo de Eduardo Camín - Instituto Humanitas Unisinos - IHU